Às vésperas de completarmos 10 anos da primeira certificação LEED no Brasil – Agência do banco Real na Granja Viana – iniciamos a consultoria 2.0 para sustentabilidade na construção. Gostaria de traçar um breve histórico da visão de um profissional que atua na área há cerca de 13 anos em países como Austrália, Espanha, Estados Unidos e Brasil. “Em 2003 entendi que os sistemas de certificação seriam os transformadores do mercado dali a alguns anos, inclusive no Brasil.”
Sustentabilidade na Arquitetura
Lembro-me quando tive meu primeiro contato com o manual técnico do LEED. Era 2003 e eu estava no último ano da faculdade de Arquitetura e Urbanismo no Mackenzie em São Paulo. Decidi estudar e me aprofundar no tema “Sustentabilidade na Arquitetura”, e segundo meu atual sócio na Ca2, e então professor Ricardo Vasconcelos, era o primeiro trabalho de graduação em arquitetura que abordava o tema. Escolhi o tema por paixão, mas também porque entendi à época, que em 5 ou 10 anos, não existiria mais construção civil dissociada do conceito de sustentabilidade. Entendi que deveria me adaptar à mudança dos tempos, já que (sem exageros) absolutamente nada sobre sustentabilidade havia sido abordado durante meu curso de graduação. Na época minha intenção era abordar de forma objetiva os conceitos de baixo impacto ambiental na construção civil atuando nos princípios básicos de conforto ambiental, economia de energia, eficiência no uso da água e na utilização de materiais de baixo impacto ambiental.
Separar o Joio do Trigo
Minha orientadora do Trabalho Final de Graduação, Prof. Pérola Brocanelli me entregou uma cópia xerox surrada, cuja capa continha os dizeres “LEED-CS Rating System v1”. Tratava-se da primeira versão daquele que se tornaria o mais difundido sistema de certificação ambiental de edifícios no mundo, que na época existia há não mais de 3 anos. Confesso que no momento não compreendi os detalhes técnicos contidos no documento. Mas captei a mensagem: Tratava-se do que podemos chamar de um guia de melhores práticas para sustentabilidade de edifícios, elaborado por especialistas de mercado literalmente para “separar o joio do trigo”. A equipe de projeto que seguisse as práticas nele contidas estaria diferenciando seu edifício ao dotá-lo de estratégias que, em comparação à prática convencional de mercado implicaria em reduzidos impactos ambientais. Na época estudei superficialmente diversos sistemas de certificação existentes além do LEED, tais como o BREEAM do Reino Unido e o Casbee do Japão. Entendi que os sistemas de certificação seriam os transformadores do mercado dali à alguns anos, inclusive no Brasil. Entre 2004 e 2006 vaguei por conferências, palestras e aulas especiais que esboçavam uma tentativa de praticar sustentabilidade na construção civil. Algo ainda muito tímido, focado em universidades e em profissionais que iniciavam suas pesquisas na área. Fiz parte de um grupo pioneiro de pesquisadores na Universidade Mackenzie, da qual também participaram alguns de meus ex-professores. Em 2006 apresentamos na 6ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, uma das primeiras propostas conceituais de arranha-céu sustentável para os trópicos. Não olhamos para certificações, apenas aplicamos boas práticas bioclimáticas em projeto – imagem à esquerda. Em 2006 migrei para Sydney, na Austrália em busca de informação. Completei uma pós-graduação em arquitetura sustentável pela University of Sydney e atuei como consultor na área na multinacional Arup até agosto de 2012, quando retornei ao Brasil.
”O que vi foi um mercado imobiliário em plena expansão, com empresas tentando ocupar lugar pioneiro na área de consultoria sustentável. Mas tudo o que vendiam era certificação.”
Encontrei uma indústria mudada. O que vi foi um mercado imobiliário em plena expansão, com empresas tentando ocupar lugar pioneiro na área de consultoria sustentável. Mas tudo o que vendiam era certificação. Chamo isso de consultoria 1.0. Consultorias em certificações ambientais, principalmente o LEED despontaram como formas de transformar o mercado, mas sobretudo como “produtos” de consultoria extremamente lucrativos. Observando retroativamente o que ocorreu no Brasil entre os anos 2006 (ano da certificação da tal agência bancária) e 2016, entendo que como indústria, passamos de inovadora para monótona e repetitiva. A certificação, que em sua origem apresenta-se como balizador de desempenho em busca de transformações de mercado, é hoje vista por arquitetos e incorporadores como um processo burocrático, monótono, uma commodity na construção, quase que um “mal necessário”. O consultor de certificação tornou-se o “eco-chato” sentado à mesa de projeto, quando não, aquele que tenta vender aquilo o que o cliente não precisa. É importante que se destaque que o problema não está nos sistemas de certificação e que como especialista em sustentabilidade na construção valorizo profundamente. Tais sistemas, em especial o LEED no Brasil, se propõem a abordar diversos temas ligados à preservação do meio ambiente na construção civil de forma tecnicamente sólida e com base em rigorosos referenciais de desempenho. A aplicação do sistema LEED no Brasil transformou para melhor, em pouco tempo e à olhos vistos o mercado da construção civil nacional nos últimos 10 anos. Não apenas incorporadores e arquitetos se tornaram mais conscientes, mudando suas práticas convencionais de projeto, mas também toda a cadeia industrial de insumos, materiais e equipamentos foi transformada em função da demanda de mercado. Boa parte dessa transformação devemos aos últimos anos de atuação do Green Building Council Brasil.
“O problema está na abordagem padrão do método de consultoria 1.0 que se estabeleceu no país e não nos sistemas de certificação.”
O problema está na abordagem padrão do método de consultoria 1.0 que se estabeleceu no país. O que conhecemos hoje como indústria é uma consultoria arcaica, baseada em relatórios espessos, complicados e que (falamos aquilo que todos sabem) ninguém lê. É uma abordagem de consultoria com base em orientações técnicas burocráticas e traduções literais de manuais que não pretendem resolver o problema dos projetistas e construtores, mas despejar normas e regras pré- definidas por terceira parte, sem a necessária compreensão que se deve ter acerca das necessidades, demandas e desafios que determinado projeto ou cliente enfrenta. Após curtos dez anos após a primeira certificação no Brasil, o processo tradicional de consultoria em sustentabilidade na construção civil está não apenas obsoleto mas repetitivo e muito monótono. O Brasil aprendeu a observar a consultoria em certificação quase como uma fábrica de relatórios, cujos profissionais envolvidos atuam como meros “mensageiros das más notícias”.
“A Sustentabilidade na Construção versão 2.0 trabalha em prol do projeto sustentável, seja ele certificado ou não. O consultor 2.0 não “produtifica” a certificação, não ensina a forma mais fácil e rápida de “pontuar” e não vende relatórios.”
A Sustentabilidade na Construção versão 2.0 trabalha em prol do projeto sustentável, seja ele certificado ou não. Os sistemas de certificação podem (e em muitos casos devem) continuar sendo aplicados, mas priorizando a concepção e não a coleta de pontos como foco. Não há nada de fundamentalmente errado nos sistemas de certificação que aplicamos, mas é a metodologia de consultoria 1.0 que deve ser radicalmente alterada.
Consultoria 2.0
O consultor 2.0 deve ter profundo conhecimento multidisciplinar. Deve ser capaz de abordar os requisitos de certificação sem se esquecer que em cada projeto existe um orçamento e sobretudo um conceito arquitetônico que deve ser sempre respeitado. A consultoria 2.0 em projetos sustentáveis se inicia com discussões sobre arquitetura antes do preenchimento de checklists e diagnósticos de certificação. Afinal, é sobre a arquitetura que se baseará em todas as outras disciplinas técnicas e é onde podemos atuar ativamente frente ao clima em que o edifício estará inserido. O consultor 1.0 se acostumou a deixar o arquiteto de lado, focando primordialmente nos sistemas prediais e em itens de fácil entendimento (porém não necessariamente supérfluos), tais como bicicletários e tintas ecológicas. O consultor 2.0 observa a certificação como uma das ferramentas disponíveis à seus clientes e não subjuga um projeto à suas métricas e requisitos à qualquer custo. Ele reconhece que nem todo projeto precisa ser certificado, e nem por isso precisa deixar a sustentabilidade de lado. Ele não “produtifica” a certificação, não ensina a forma mais fácil e rápida de “pontuar” e não vende relatórios. Ele participa da concepção do projeto, desde a arquitetura, vendendo conhecimento técnico multidisciplinar sólido e auxiliando arquitetos, incorporadores e construtores à realizarem sua visão sustentável independente de homologações de terceira parte. Já ouvi muito que a certificação é consequência de um bom projeto. Nem sempre isso é verdade. Existem bons projetos, adequadamente conceituados do ponto de vista da sustentabilidade e que não visam certificação. O inverso é igualmente verdadeiro. A consultoria 2.0 para sustentabilidade na construção entende que um bom projeto sustentável, seja ele certificado ou não é consequência da atuação de uma boa equipe de projeto, incluindo o consultor. Esqueçamos a saudosa certificação da tal Agência do Banco Real em 2006 e sejamos bem vindos à era 2.0 da Sustentabilidade na Construção. Por Marcelo Nudel Fonte: Ca2 Consultores Ambientais Associados
Data publicação: 02 de dezembro de 2019
Canais: Construção Sustentável
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