A tecnologia muda, mas as fachadas permanecem como legado para as futuras gerações. A partir desta observação que o arquiteto Marcelo Nudel questiona o modus operandi de sistemas de certificação de edificações como o Leader Ship in Energy and Environmental Design (Leed) e o Alta Qualidade Ambiental (Aqua). De acordo com Nudel, esses selos falham quando avaliam de forma conjunta, em um mesmo pacote, itens como as fachadas (envoltórias) e sistemas como os de ar-condicionado e de iluminação.
“Isso significa que uma fachada de desempenho reduzido pode ser compensada por meio da especificação de outros sistemas mais eficientes. A consequência disso é entregar uma envoltória com desempenho aquém do desejado”, esclarece o especialista cm construções sustentáveis.
Nudel também avalia que as certificações de origem estrangeira, como o Leed, precisam se adaptar à realidade brasileira para não desestimular a procura por determinados insumos para a construção civil, como a madeira certificada. Apesar disso, ele reconhece a importância das certificações para a transformação do mercado brasileiro.
“Os sistemas de certificação pressionaram fabricantes e projetistas a mudarem as suas práticas que melhoraram muito nestes últimos 12 anos”, diz o arquiteto.
Confira abaixo a entrevista de Marcelo Nudel concedida à Revista Techne, edição 214. Formado em arquitetura e urbanismo pela Universidade Mackenzie, em 2004, Nudel mudou-se, em 2006, para a Austrália, onde fez mestrado em Sustainable Design Science, pela Universidade de Sydney. Em 2007, começou a trabalhar na multinacional de engenharia de projetos Arup, com sede em Londres, no Reino Unido. Voltou para o Brasil em 2012 para liderar o grupo de Edificações Sustentáveis na Arup de São Paulo. Atualmente, é sócio-diretor na Ca2 Consultores Ambientais Associados, empresa de consultoria em conforto ambiental, acústica e sustentabilidade de edificações.
O que deveria ser feito?
Primeiramente, dar um foco mais rigoroso para o projeto de envoltória, não olhar a fachada e os outros sistemas em um mesmo pacote. O sistema de certificação não tem conseguido separar estas duas coisas. Basicamente, não existe uma fachada que passe ou não passe pelo sistema Leed, já que você pode compensar uma envoltória deficiente com outros sistemas. Deveria haver uma separação entre fachadas e sistemas para colocar um pouco mais de pressão nos projetistas, para dar mais atenção ao projeto da envoltória. O arquiteto ainda está numa posição um pouco passiva neste processo.
Poderia falar sobre algum projeto em que esteja trabalhando atualmente?
Não posso mencionar o nome do empreendimento ou o cliente, mas posso descrevê-lo. Trata-se de um empreendimento de uso misto em São Paulo que inclui uma torre corporativa de alto padrão, duas torres residenciais e uma torre multiuso com apartamentos residenciais e salas comerciais, além de um centro comercial com shopping, lojas e supermercado. O conceito de sustentabilidade está nas origens do projeto,que está sendo trabalhado com uma visão de sustentabilidade a longo prazo, independentemente dos sistemas de certificação. Conseguimos conjugar as aspirações sustentáveis com a realidade comercial do empreendimento, pois não podemos deixar de lado sua viabilidade financeira e de mercado. A ideia foi conceber este novo “bairro”a partir de um “guia de diretrizes sustentáveis” que pudessem ser seguidas ao longo de todo o desenvolvimento do projeto, que vai durar até 2025.
Quais os desafios em um projeto de longa duração como esse?
A grande questão era como conseguiríamos elaborar as bases sustentáveis de um projeto que vai continuar sendo repensado pelos próximos dez anos, já que as tecnologias e os referenciais de projeto mudam com o tempo. Faremos o acompanhamento e revisões periódicas de projeto que, apesar disso, tem bases sólidas. O “guia de diretrizes sustentáveis” foi feito com base em conceitos de sustentabilidade e metas definidos junto com o cliente, por meio de workshops, com base em referências internacionais de desempenho.
Que características um empreendimento como este precisa ter para perdurar com qualidade?
Primeiramente, a redução de consumo de água e de energia. Não adianta você adotar uma tecnologia de geração de energia se não focar primeiro na redução de consumo. Fizemos reformulações preliminares de energia para determinar qual era a volumetria, formato da planta baixa e orientação ideal de cada torre. Trabalhamos junto com o arquiteto na concepção da arquitetura para, posteriormente, focarmos no sistema de fachadas. Só depois disso é que começarmos olhar para as tecnologias como o sistema de ar-condicionado.
Em que estágio está o Brasil na cultura da construção sustentável, comparado a países como Alemanha. Inglaterra e os Estados Unidos?
Esses países estão significativamente à frente do Brasil no que se refere à legislação para controle de impactos ambientais em obras e concepção de projeto. O código de edificações britânico, por exemplo, tem requisitos muito rigorosos para a eficiência energética de projetos e, se eles não forem atendidos, a construtora não obtém alvará para tocar uma obra. Nesses países, independentemente dos sistemas de certificação, o nível de referência dos projetos e obras é muito alto, falta no Brasil uma legislação mais rígida neste sentido, apesar das tentativas voluntárias como o Procel Edifica, que pode se tornar compulsório algum dia, mas acho que ainda estamos longe disso.
O Procel Edifica é um programa nacional, o Aqua é originalmente francês e o Leed, americano. Em que eles diferem?
O Procel é um sistema de etiquetagem voltado apenas para a eficiência energética, enquanto o Leed e o Aqua englobam, além da eficiência energética, questões como resíduos da obra, água e materiais. E como o Procel é basicamente um selo de eficiência energética, não toca em questões como a qualidade do ambiente interno, por exemplo. Hoje há também um sistema de certificação para residências criado pelo Green Building Council (GBC) do Brasil, que tem uma forte ligação com o United States Green Building Council, criador do sistema Leed. É um sistema de certificarão da tipologia residencial feito nacionalmente e, portanto, adaptável a nossa realidade, o que é muito positivo. A tendência para os próximos anos é que o sistemas de certificações como o Leed falham quando olham as fachadas e outros sistemas de forma conjunta. Uma fachada com desempenho reduzido pode ser compensada com sistemas de ar-condicionado e luminotecnia mais eficientes, pois o que interessa é o resultado final do consumo energético. Mas de certificação, incluindo o Leed, se adaptem mais ao Brasil.
Quais as diferenças entre o Leed e o Aqua para o profissional que especifica, no caso o arquiteto ou o engenheiro?
O Aqua é uma adaptação do francês haute Qualité Environmentale (HQE) ao Brasil. É uma tentativa de tornar a especificação muito mais palpável ao profissional brasileiro, pois considera as nossas realidades de mercado e faz referência á norma de desempenho brasileira. Já o Leed deixa a desejar nesta área por usar muitas referências norte-americanas.
Que referências? Poderia dar um exemplo?
Por exemplo a madeira certificada. O Leed exige a especificação da madeira certificada pelo Forest Stewardship Council (FSC), que não é abundante e tão disponível no mercado brasileiro. Existe uma tendência de que certas referências internacionais desestimulem o mercado por não serem aplicáveis. Eu vivenciei isso na Austrália com o Green Star, sistema de certificação próprio e adaptado à realidade de lá. Mas, havia a exigência da especificação de madeira certificada pelo FSC, o que se mostrou inviável para o mercado australiano, que então, se mobilizou para alterar esta especificação de referência. Hoje eles dispõem de um certificado de madeira local, reconhecido pelo mercado australiano. Isso mostra que precisamos tomar cuidado com as exigências internacionais de especificação inviáveis para determinado país, pois isso pode desestimular completamente a busca por um material.
Como está o mercado brasileiro em relação à oferta de tecnologias exigidas pelo Leed, por exemplo?
Temos a maioria dos produtos exigidos pelo Leed. Mas alguns deles têm um custo mais elevado. O custo da geração da energia fotovoltaica no Brasil, por exemplo, ainda pode se tornar proibitiva, principalmente para determinadas tipologias, como a dos edifícios residenciais verticais. Já os proprietários dos empreendimentos corporativos de alto padrão conseguem, muitas vezes, arcar com esses materiais e tecnologias. Acho que o grande desafio do mercado nacional é encontrar mecanismos para viabilizar este tipo de tecnologia em uma escala menor, ou seja, a residencial. E o GBC Brasil tem a intenção de explorar melhor a aplicação desses sistemas de certificação nos edifícios residenciais verticais. O código de edificações britânico, por exemplo, tem requisitos muito rigorosos para a eficiência energética de projetos – e, se eles não forem atendidos, a construtora não obtém alvará para tocar uma obra.
Como essa certificação residencial se relaciona com a Norma de Desempenho para Edificações Habitacionais (NBR 15.575:2013)?
As duas estão ligadas. São tentativas de se criar algum tipo de referência para o aumento de desempenho e melhoria da formalidade da cadeia produtiva da tipologia residencial, que foi relegada durante bastante tempo nesta área de sustentabilidade no Brasil como Pais, ainda estamos atuando em um nicho muito específico, que é o dos empreendimentos corporativos de alto padrão. Mas eles representam uma parcela ínfima das construções no Brasil.
A “cultura do alvenaria” que há no Brasil é um desafio para tornar a construção mais sustentável?
A padronização de materiais e a industrialização de componentes certamente ajudam na redução de desperdício e resíduos de obra o que, por si só, já representa um ganho enorme na questão da sustentabilidade. Mas, isso requer mão de obra especializada e é ai que está o desafio: a qualificação da mão de obra no Brasil.
Vivemos uma grave crise hídrica em São Paulo existem estudos que mostram o quanto se economiza no consumo de água de um edifício ao especificar sistemas de acordo com certificações de sustentabilidade?
O processo de certificação já implica a realização de estudos técnicos como o cálculo do balanço hídrico e a simulação energética. Eles ajudam a entender o que faz sentido para o projeto do ponto de vista ambiental e financeiro. O que eu posso dizer é que não faz sentido técnico ou financeiro, por exemplo, propor um sistema de captação e reúso de água pluvial se o regime de chuvas não mostrar essa viabilidade. Com o balanço hídrico sabemos qual é o consumo previsto para um edifício, o potencial de geração das águas cinza, negra e pluvial. Sabemos o quanto o prédio vai consumir e qual será a oferta desta água de reúso para, a partir daí, entender o que faz sentido. A mesma coisa é feita com a energia por meio do processo de simulação energética.
Fale um pouco mais sobre essas simulações. Como elas funcionam?
Na simulação computacional de energia, por exempla você insere dados ou premissas sobre a fachada (proteções solares, desempenho das paredes e vidros, etc.) e informações sobre todos os equipamentos que consomem energia (ar-condicionado, luminotecnia, etc.) Daí roda-se uma simulação com base em dados como a localidade, a partir da qual conseguimos prever o quanto o edifício consumirá quando estiver em operação. Em busca de um resultado ótimo, você pode alterar variáveis para e como isso afeta a eficiência energética. Um exemplo: o que acontece se eu melhorar o desempenho do vidro? E se eu trocar o sistema de ar-condicionado e reduzir a potência da iluminação? No entanto, existem alguns tipos de simulação que não têm sido bem aplicados no Brasil, como é o caso da simulação da iluminação natural. Geralmente, pouco se dá bola para a iluminação natural quando você aplica um sistema de certificação em uma simularão energética. No Brasil, não se costuma pensar em como as decisões do projeto de fachada afetam a qualidade de luz no espaço.
As envoltórias 100% de vidro aplicadas no Brasil recebem críticas de especialistas em conforto térmico. É possível que um edifício tenha fachadas totalmente envidraçadas e ainda assim bom desempenho térmico?
É possível, mas não é desejável. O projeto de fachada tem de ser pensado para que as diversas variáveis sejam otimizadas. Se você decidir colocar muito vidro, ele vai ter de ser de altíssimo desempenho. Então, o custo, que é uma das variáveis, já fica em desbalanço. A segunda variável em desbalanço é a iluminação natural, pois, como você vai precisar de muito controle solar a transmitância luminosa será reduzida. Outro problema gerado pelo emprego do vidro piso a teto nas fachadas é o ofuscamento. O que estou querendo dizer é o seguinte: muitos projetos de edificações com fachadas integralmente de vidro passam na certificação Leed e Aqua, simplesmente porque a ferramenta te permite compensar uma fachada de desempenho médio ou ruim com um sistema de ar-condicionado e iluminação mais eficientes. Eu não recomendo, em nenhum dos meus projetos, a utilização excessiva e indiscriminada do vidro em todas as fachadas.
Os sistemas de certificação deveriam valorizar mais os projetos de fachadas?
Certificações como o Leed falham quando olham as fachadas e outros sistemas de forma conjunta, em um mesmo pacote. Uma fachada com desempenho reduzido pode ser compensada com sistemas de ar-condicionado e luminotecnia mais eficientes, pois o que interessa é o resultado final do consumo energético. A consequência disso é entregar para a cidade uma envoltória com desempenho aquém do desejado. Mas é justamente a envoltória que será o legado das gerações futuras, pois é ela que permanecerá por mais de 50 anos. Coloca-se todo o foco nos elementos internos, que serão trocados ao longo do tempo. A luminotecnia e o ar-condicionado podem mudar com o inquilino, que pode optar por sistemas que não sigam as recomendações de eficiência energética estipulados originalmente pelo projeto. Fonte: Ca2 Consultores Ambientais Associados
Data publicação: 17 de fevereiro de 2020
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